Aos 16, ele criticou desenhos da polícia e virou 'o cara' do retrato falado
O artista forense Sidney Barbosa, 53, senta à frente de duas telas de computador em uma sala com ar-condicionado gelado, mesmo em uma noite fria na capital paulista. Ele trabalha no DHPP, o Departamento de Homicídios e de Proteção à Pessoa da Polícia Civil de São Paulo.
Foi na polícia, desenhando retratos falados, que ele ajudou em investigações de casos emblemáticos em São Paulo, como o do Maníaco do Parque, do sequestro do empresário Abílio Diniz e, recentemente, da jovem Bruna, morta em Itaquera, na zona leste.
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'Desenho melhor'
O agente, que não é um policial, mas contratado por uma autarquia do Estado, entrou para o trabalho aos 16 anos, quando se apresentou na central de polícia com a cara e a coragem.
"ava aqui na porta sempre, era moleque, cara de pau, e um dia falei para um dos caras que ficavam na porta: 'desenho melhor que isso, aí', apontando um desenho de retrato falado colado no hall de entrada. Ele me disse: 'sobe lá e fala para os caras [investigadores] então'", lembra Sidney.
Coincidentemente, no dia, uma mulher estava no departamento em busca de uma criança raptada e os dons de retratista foram colocados à prova.
Fiz um retrato falado [do homem que a mulher suspeitava ser o sequestrador], mostramos para ela, que apontava algumas características, mas que não batiam totalmente. Ela afirmava que estava parecido com o desenho, mas o cabelo não era igual. Então, quando mudei, ela entrou em desespero, começou a gritar que era ele.
Sidney Barbosa, artista forense do DHPP
O retrato falado de Sidney circulou, o criminoso que havia raptado a criança em uma igreja na região central da cidade foi identificado e preso. O feito lhe rendeu reconhecimento entre os investigadores e uma reunião com o diretor do Deic (Departamento Estadual de Investigações Criminais), que lhe propôs uma espécie de contrato de estágio na Polícia Civil.
'Era uma distração'
No início da carreira ao lado dos policiais e investigadores, Sidney tratava um câncer na região da perna esquerda, que teve de ser amputada pelo avanço da doença.
Foi uma forma de lidar com esse trauma. Era uma distração para mim desenhar os suspeitos, mas a polícia acabou percebendo que eu tinha talento e que eles precisavam disso, porque não havia especialistas na área.
Sidney Barbosa, artista forense do DHPP
Sidney explica que em meados dos anos 1980 havia um profissional que montava uma espécie de quebra-cabeças com as imagens.
"Mas os retratos ficavam muito chapados —ele combinava lâminas, desenhadas à nanquim, e formava um rosto, mas sem expressão, sem características marcantes, sem luz e sombra. Faltava realismo", lembra.
Sidney explica que, antes de ele começar na polícia, os retratos eram feitos juntando diversos traços colhidos de fotos em um livro de suspeitos —por exemplo, a boca de um, o cabelo de outro— até se formar um rosto completo.
"Em relação ao ado avançamos muito, hoje é diferente, contamos com uma biblioteca de tipos de rosto, cabelos, olhos, expressões, formatos de boca —com bigode, sem bigode. Assim vamos montando o rosto com recursos de computação gráfica. Na maioria das vezes, conseguimos chegar a 80% da fisionomia da pessoa", explica Sidney.
'A vítima fica esgotada'
Lembrar a imagem de um agressor, que tentou matar, feriu ou cometeu abuso sexual, é um momento delicado para as vítimas —e elas estão, muitas vezes, em estado de choque. Por isso, ouvi-las requer sensibilidade.
"Muitas vezes, o retrato falado acaba sendo exaustivo. A vítima também fica esgotada, porque nem sempre consegue relatar de forma coerente devido ao trauma", aponta Sidney.
Com um colega, já aconteceu de o retrato falado despertar emoções intensas depois de pronto.
"Temos de ouvir com paciência, até onde a vítima consegue falar. Já houve um caso em que, quando terminei o retrato e mostrei para uma mulher, ela começou a chorar e rasgou o desenho dizendo que era ele quem tinha abusado dela", lembra Thiago de Souza, policial civil e artista forense que trabalha com Sidney no DHPP.
De forma geral, o tempo para fazer um retrato falado é de 1h30 —mas ele depende exclusivamente da memória da vítima e da capacidade de lembrar traços importantes do autor do crime. A linha "T", olhos nariz e boca, é uma das mais importantes para identificar um agressor.
Outra técnica usada pelos artistas forenses é pedir para que a própria vítima desenhe o suspeito, algo feito com mais frequência com crianças que sofreram crimes sexuais.
Para exemplificar, Sidney a os dedos por baixo do teclado do computador e tira um desenho feito com traços simples, pouco elaborado —que mostra um homem de boina e barba comprida. Ele foi feito por uma menina que sofreu abuso sexual.
Seguindo o padrão do desenho da garota, Sidney conseguiu fazer uma imagem mais realista, que batia com a foto de um homem já procurado por agressão sexual. O homem foi encontrado e preso na região dias depois —com o avanço da investigação, respaldada pela imagem do então suspeito
'Retrato falado não é uma prova'
Sidney afirma que, em muitos casos, só de apresentar o retrato falado para o investigador, o documento é associado a algum suspeito com agens criminais.
"Por exemplo, em crimes sexuais recorrentes em uma mesma região, o policial bate o olho e sabe que é aquilo de que precisava. Ele vai até a base de dados, procura entre os alvos conhecidos e, muitas vezes, consegue identificar o suspeito", diz o artista forense.
O retrato falado serve justamente para isso: reduzir o universo de busca. Ele afunila a investigação e ajuda a chegar com mais precisão à identificação.
É importante destacar que o retrato falado não serve como prova. Você não pode usá-lo isoladamente para afirmar que alguém é culpado. Ele é um indício, um ponto de partida. A confirmação da identidade vem depois, com reconhecimento fotográfico, pessoal, exame de DNA e outros meios.
Sidney Barbosa, artista forense do DHPP
Para Sidney, o retrato falado é uma caricatura do autor do crime. "Ele depende muito da percepção do policial ou do investigador que está à frente do caso. A sensibilidade de quem olha aquele desenho e percebe alguma característica peculiar é fundamental para a identificação do autor", explica.
Temos vários casos em que o retrato falado lembra, sim, o autor --embora haja diferenças visíveis. Mesmo assim, foi esse retrato que levou à prisão do suspeito.
Sidney Barbosa, artista forense do DHPP
Maníaco do Parque e caso Bruna de Itaquera
Sidney foi o responsável pelo retrato falado do Maníaco do Parque, condenado à prisão pela morte de sete mulheres em 1998, e também pelo retrato referenciado que identificou o rosto do suspeito do caso da jovem Bruna Oliveira da Silva, morta nos arredores do Metrô Itaquera quando voltava para casa, neste ano.
"Foram técnicas diferentes. No caso do Maníaco do Parque, ouvíamos vítimas muito traumatizadas e chegamos ao seu rosto. No caso de Bruna, usei frames de diversas câmeras de segurança, que tinham a imagem [do suspeito] em baixa qualidade. Melhoramos a qualidade e criei o retrato referenciado dele", lembra Sidney.
Com a imagem, houve uma espécie de "match" com o banco de dados de suspeitos da Polícia Civil, que conseguiu chegar à foto de Esteliano José Madureira, 43, que já tinha agem pela polícia. Dias depois, ele foi encontrado morto.
Entre os processos, Sidney lembra uma curiosidade do caso do Maníaco do Parque, quando o criminoso tentou burlar seu retrato falado, mas não foi páreo para o talento do agente.
"Ele era descrito pelas vítimas com uma cicatriz na sobrancelha, de uma possível queda de skate, que formava um risquinho. Sabendo disso, imaginei que, após a divulgação, ele tentaria disfarçar e fiz uma versão com ela raspada. Quando foi capturado, sua sobrancelha estava de fato raspada", diz Sidney.
Por mês, são feitos cerca de 20 retratos (entre referenciados e falados), mas Sidney afirma que o número caiu, em relação à época em que começou na polícia.
"Antes fazíamos cerca de mil mensalmente. Hoje, com as câmeras de segurança espalhadas em toda a cidade, só fazemos um retrato falado quando se esgotam todas as possibilidades, mas sempre estamos melhorando a qualidade de imagens captadas por esses recursos", afirma Sidney.